HISTÓRIA

Tradução de Anna Martino

Preparação de Jana Bianchi

Publicado originalmente em inglês na revista Clarkesworld (leia AQUI)

Como assim, por que não avisei antes?

Mas você é doido ou o quê? Eu avisei!

Responde aí para mim, então, já que você se acha tão esperto: se tivesse visto aquilo, o que você teria feito?

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Tudo começou com um retalho que usei para testar a tensão do fio na máquina. A mesma sequência, fio branco de algodão na sarja azul-marinho, a mesma linha de pontos e traços. Eu não sabia que aquilo era código Morse até o Jean me dizer. Era mais ou menos assim, deixa eu colocar no papel para você ver:

 

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Pensei na hora: alguém mexeu na minha máquina de costura. Não teria sido a primeira vez — os engenheiros adoravam rir do meu hobby, e tinham essa mania de aprontar com minhas posses. Para ser sincera, antes esse tipo de coisa do que o assédio constante que eu sofria: lá vai a costureirinha. Você pode arrumar esse buraco nas minhas calças? Deixa só eu baixar o zíper pra tirar…

Não vou te dizer que fiquei feliz pelo que aconteceu lá com eles, mas tem dias em que penso se não foi algum tipo de justiça divina. Eles sabiam e não fizeram nada para impedir.

Mas isso já é outra história. De volta para o assunto: eu sabia que o Jean também estava sofrendo lá no quartel. Ele era o mais novo no time de engenharia, aquele que mandavam para as tarefas mais ingratas e que nunca era chamado para a parte divertida — se é que dava para chamar de “divertida” uma missão de envio de civis para Marte. Ele e eu éramos a mesma coisa para a chefia: peças facilmente substituíveis, embora seja bem complicado achar bons engenheiros aeroespaciais — e, no meu caso, boas costureiras aeroespaciais. Não à toa a gente se juntou, apesar da diferença de idade e da barreira do idioma.

Foi o Jean que decodificou os tracinhos esquisitos que minha máquina de costura pré-histórica tinha produzido:

“Cara Mia, a missão está comprometida. Fuja enquanto é tempo. Quem é essa tal de Mia?

— Não é ninguém. Isso é um apelido. Tipo ma puce ou meu amor.

Um apelido, aliás, que não ouvia tinha bem uns doze anos.

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Minha avó era especializada em costurar lingerie. Ela manjava tudo de tecidos elásticos e sabia prestar atenção nos detalhes minúsculos que fazem toda a diferença. É por isso que a Agência Espacial a contratou quando precisou de ajuda com os primeiros trajes espaciais. Neil Armstrong andou na Lua porque uma especialista em sutiãs costurou à mão a barra do macacão branco dele. E eu me tornei uma designer de trajes espaciais porque uma especialista em sutiãs fez o traje do Neil Armstrong. Tradição familiar é isso aí.

Mas tem um detalhe: minha avó nunca falava “Cara Mia” com um sorriso, era sempre um aviso: Cara Mia, seu pai não vai gostar desse troço brilhante no seu nariz. Cara Mia, se você quer sair daqui, tem que estudar muito ou se casar com um cara rico. Cara Mia, esse moleque vai ser o seu fim.

Resumindo, “Cara Mia” era código para encrenca, e encrenca era a última coisa que eu queria no trabalho. Aquela missão era o bilhete premiado, o sonho de qualquer especialista no campo. Eu sacrifiquei um monte de coisa para chegar até aquele ponto, e não ia ser uma máquina de costura velha que só trouxe para cá por questão de sentimentalismo que ia me estragar tudo.

Então lubrifiquei todas as partes móveis; troquei agulhas, o pedal, a chapa da agulha, o calçador e a lançadeira, mas nada funcionou. Troquei a porcaria do motor, até, mas não adiantou nada — por mais que desmontasse e remontasse o bicho, a máquina ainda alinhavava “Cara Mia, a missão está comprometida”.

— Mas que se fodam seus “Cara Mia”, vó! — gritei no meio do vazio gélido, só para me arrepender cinco minutos depois. Vai que alguém me ouvia?! (Tá bem, o que pensei foi Vai que essa aparição que diz que é minha avó explode a máquina de costura só de birra?) — Me explica: por que a missão tá comprometida? Sei que é um troço perigoso, mas… Tipo, a senhora fez os primeiros trajes espaciais, não fez? Aqueles homens lá podiam ter morrido no caminho até a Lua. Isso te impediu? Me responde, qual que é o problema?

Meti o pé no pedal e fiz a bobina girar. Ponto e traço e traço e ponto, até o tecido acabar: “Quando você faz algo sob medida, não pode ignorar os detalhes. Eles estão ignorando os detalhes. Fuja enquanto é tempo”.

Pensa pelo meu lado. Por que é que os figurões iam acreditar em mim? Eu não faço ideia de como uma nave espacial é feita. Sou só uma mulher juntando uns retalhos aqui e ali para fazer uns macacões chamativos. Eles diriam que sou maluca e iam passar o trabalho para outra pessoa. E pensei no Jean, também. Ele não merecia morrer daquele jeito. Ninguém merecia. Duzentas pessoas só naquela bosta de unidade, e todas as outras que nunca cheguei a conhecer. Se os manda-chuvas estavam cortando gastos de propósito, será que estavam todos condenados? Será que eu podia mesmo salvá-los?

Eu devia ter costurado mais uma linha. Devia ter perguntado mais. O que fiz foi desligar a máquina e sair correndo.

Se você estivesse lá, teria feito a mesma coisa.

Não teria?

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Mantive distância da máquina e fui me concentrar no trabalho fazendo os trajes espaciais e uniformes. Eu trabalhava com aquelas máquinas eletrônicas lá do complexo, aqueles trocinhos sem alma. Um mundo de tecidos inteligentes e medidas precisas. Não se desperdiçava nem um centímetro de material — aquele era o trabalho pelo qual eu estava sendo muito bem paga para fazer sem questionamentos. As medidas vinham pelo e-mail e eu fazia meus truques sem conhecer nenhum daqueles estranhos que colonizariam o Planeta Vermelho para a gente.

E enquanto tudo isso acontecia, era o mesmo grito que ecoava no fundo do meu crânio: “Cara Mia, fuja enquanto é tempo”.

Você teria conseguido fingir que estava tudo bem? Será que eu estava fazendo mortalhas para civis sonhando com Marte? Minha velha máquina não me respondia quando perguntada, só me mandava dar no pé a cada consulta. Típico da minha avó: que se danem os outros, salve sua pele. Ela sobreviveu a duas guerras mundiais com esse egoísmo, mas naquela ocasião não dava para eu me utilizar desta mesma tática. Será que você seria capaz disso, mesmo que o preço fosse nunca alcançar Marte?

Quando o Jean apareceu outra vez no meu quarto, com aquele olhar exausto de quem está carregando o peso do mundo nas costas, eu soube que as coisas estavam indo ladeira abaixo.

Parte de mim queria mentir, nem que fosse só para salvá-lo. Era só dizer que a máquina tinha quebrado. Mas eu escolhi a verdade, e foi isso que nos ferrou.

Nunca perguntei ao Jean como os franceses falavam com seus mortos. Aquela máquina de costura fora de moda, feita de plástico verde-água e decorada com florzinhas bregas, não era bem o que eu teria imaginado como instrumento de comunicação com os espíritos, tampouco. Eu devia ter dito isso pra ele.

— Isso era de sua avó?

— Não, da minha mãe. A vovó nunca teria uma máquina assim tão civil. — E precisei acrescentar: — Tem uma diferença entre as suas chaves de fenda profissionais e aquelas que eu posso comprar na loja de ferragens, não tem? Então, é a mesma coisa.

— Vivendo e aprendendo — Jean tentou rir, mas ele estava que parecia uma corda esticada de tão tenso no processo de ligar a máquina, tremendo enquanto falava com um imenso respeito. — Madame, perdoe-me por importuná-la, mas dizem que os que partiram podem ver o que os outros não enxergam. A senhora viu algo que não fui capaz de notar. Por favor, aconselhe-me. Estaria eu errado em preocupar-me? A senhora tem algum conselho? — Ele olhou para mim com uma expressão séria no rosto. — Sou eu quem tem de pressionar o pedal, ou seria você?

— Sei lá, bicho, é a primeira vez que faço isso. Senta aqui, deixa te mostrar como se faz… Você tem que segurar o tecido assim, ó… Abaixa a alavanca aqui atrás. Ótimo. Agora, pressiona o pedal com delicadeza. Como se você estivesse num carro.

Se ele estivesse em um carro, Jean teria enfiado o veículo no primeiro muro que encontrasse na frente: ele pressionou o pedal depressa demais, e a máquina quase pulou para fora da mesa. Ainda assim, a mensagem apareceu — e, enquanto ele lia, seu rosto foi ficando rubro.

— Ah, Vera… Eu queria… Bom. Isto é informação o suficiente.

— Por favor, me diz o que aconteceu.

— Como posso explicar? Seria como… Como o forro de um casaco de frio, acho? Em um casaco de boa qualidade, o forro mantém o estofo no lugar, certo? Eles não estão forrando em todos os lugares. Acho que pensam que é suficiente. Eles não arriscariam… Quer dizer, sempre há um risco, mas… — Ele olhou de novo para a máquina, o coração quase na boca de tanto nervoso. — Você crê que possamos salvá-los? Se eu falar com os superiores, se explicar a situação, poderíamos salvá-los?

Daquela vez, quem operou a máquina fui eu. A frase foi bordada, Jean leu e saiu correndo.

Tempos depois, eu decodifiquei a frase sozinha: “Eles riram de suas preocupações, e ainda assim você se preocupa com eles? Deixe que queimem, eles que acenderam a pira.”

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Na manhã seguinte, encontrei uma máquina eletrônica de ponta no meu escritório, substituindo minha herança de família. Também me informaram que o alferes Jean tinha recebido uma licença médica. As câmeras de circuito interno apareceram um dia depois disso, por medidas de segurança.

Dá para imaginar o resto, certo?

A máquina nova não pulava nem engripava — era como se tivessem me presenteado com um robô costureiro. Tentei chamar minha avó de volta, mas ou ela se recusava a falar por meio de um maquinário tão complexo ou…

Ou então ela tinha me deixado na mão. Não seria a primeira vez.

Mas eu não podia deixar aquele pessoal na mão. Não podia abandonar o Jean. Então virei para a câmera do circuito interno e disse, em alto e bom tom, “Quero minha máquina de costura de volta”.

E não costurei nem um ponto sequer nos trajes espaciais até que me dessem atenção.

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Eles suspenderam meu salário. Eles chamaram um médico para checar minha sanidade. Eles chamaram outra especialista em trajes espaciais, que só ficou uma semana no emprego antes de todas as máquinas de costura eletrônicas do complexo começarem a cuspir pontos em código Morse nos tecidos tecnológicos. Àquela altura, o complexo inteiro sabia o que estava acontecendo — como é que iam manter segredo? Primeiro o Jean, depois eu, depois a nova especialista, e aí o código Morse começou a aparecer em todos os equipamentos eletrônicos, da simples cafeteira aos maiores computadores na sala — todos piscando “Fuja enquanto é tempo” e “Exijo falar com a Vera”.

Duas semanas depois, lá estava eu, sozinha diante dos oficiais militares.

E, em cima da mesa imensa de mogno entre a gente, minha velha máquina de costura e um rolo de tricoline preta. Ao redor da máquina, os engenheiros e comandantes me encaravam tentando fingir costume — mas estava na cara que estavam ficando sem tempo e sem paciência.

Você devia ter visto a cena: treze homens com medo duma máquina de costura doméstica verde e branca. Isso me traz um certo conforto, hoje.

— A senhorita compreende que esta reunião é confidencial? — disse o comandante mais velho. Questão mais retórica, impossível. — Faça isso funcionar.

Dez engenheiros na sala, e ninguém sabia mexer numa máquina de costura?

Que nada, bem. Eles contratam alguém para tal, e aí chamaram outra pessoa, e depois outra. Quando os resultados permaneceram iguais, tiveram que me ver fazendo o truque.

Eu passei o fio na máquina e rasguei um pedaço do tecido. Vó, não posso deixar essa gente morrer, pensei enquanto via a bobina girando e os pontos e traços aparecendo no tecido, fio branco contra a tricoline preta. Diz algo no qual eles possam crer.

Um dos comandantes pegou o retalho assim que terminei a costura.

— Igual às outras mensagens — disse ele para os companheiros, mostrando o pedaço de tecido. — Os números são os mesmos.

— Não posso adiar o lançamento por causa duma máquina de costura cuspindo coisas sem sentido. Primeiro esse tal de “Exijo falar com a Vera” e agora esses códigos tontos?

— Códigos tontos iguais às partes que precisam de atenção. Jean tinha as informações corretas a respeito dos seus atalhos.

— Já disse que não são “atalhos” coisa nenhuma! A gente checou todos os pontos! Isso é só uma máquina quebrada, uma coisinha de nada. A menina provavelmente mexeu no mecanismo de brincadeira. Não foi, mocinha? Você mexeu nesse equipamento, né? Queria assustar os engenheiros porque eles foram grosseiros com você, e numa dessas enlouqueceu aquele pobre alferes. Sabia disso? Ele enlouqueceu por culpa sua.

— Vocês estão economizando no material? — Eu tinha de perguntar. Queria me defender, defender minha avó, talvez o Jean. O problema não era a máquina: o trabalho que tinha deixado o alferes maluco. Pobre do Jean, que queria fazer a coisa certa: eu devia isso para ele. Se havia causado a morte ou a loucura dele, devia pelo menos um descanso para sua alma.

— Estamos fazendo o melhor possível com a verba que temos.

— Não foi o que eu perguntei. Vocês estão economizando no material?

— Está dispensada — disse o comandante mais velho.

— Vocês estão economizando no material?

— Tirem essa mulher daqui! Agora!

— Vocês estão economizando no material? Você vai matar todo mundo! Será que não entende que vai matar todos eles?

Foi por isso que vim parar aqui. Eles não conseguiram explicar o fenômeno, então puseram a culpa na bruxa. Melhor fingir que eu tinha ficado maluca, que mexi nas máquinas do complexo para que elas vomitassem aquele código Morse vodu.

A mensagem que o Jean leu? Aqui, veja você mesmo: guardei isso comigo quando me trancaram aqui. Cá está sua verdade, meu bem, escrita em fio branco sobre sarja azul: todos os locais com pontos fracos na espaçonave, os códigos para as partes onde usaram material de segunda categoria. Os mesmos pontos que causaram a explosão no dia do lançamento do foguete. 

Super econômico, né? No fim, todos eles eram dispensáveis, assim como eu. Quem diria?

O guarda me deixou usar as máquinas de costura daqui dia desses. O pessoal queria ver se o truque se repetiria, agora que a nave explodiu como previ. E sabe o que saiu? Olha só:

 

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Conseguiu traduzir?

Está escrito “Eu te perdoo”.

Foi minha avó quem disse isso? O Jean? Algum astronauta vestindo o traje que eu fiz?

Eles podem me perdoar o quanto quiserem: estão todos mortos, e esta é uma sentença que não posso descosturar. De que adianta saber como será o futuro, se o futuro seria esta cela e aquelas nuvens brancas ardendo no céu? Qual o sentido de saber das coisas se você não pode alterá-las?

Então, vamos lá, me conta o que você faria. Sou toda ouvidos.

 

Foto por Anita Saltiel

Autoria
Anna Martino

Anna Martino nasceu em São Paulo em 1981. Uma das fundadoras da Editora Dame Blanche, especializada em ficção especulativa, ela já teve trabalhos interpretados na Radio BBC World e publicados em revistas e coletâneas em inglês e em português, com destaque para Prosérpina (Noveletter, 2023) e Senhor Tempo Bom (Plutão Livros, 2020). Também é coapresentadora do podcast “Eis a questão”. Nas horas vagas, costura trajes vintage e sofre com campeonatos de futebol e com a Fórmula Um.

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