HISTÓRIA

Tradução de Jana Bianchi

Preparação de Diogo Ramos

Publicado originalmente em inglês na revista The Deadlands (leia AQUI)

Destroços se espalhavam pela costa, chegando até a casa de praia que jazia sem janelas. Era quase como se ela estivesse convidando qualquer coisa — tudo — a adentrar a estrutura manchada pela água depois de ter sido atingida por ondas e mais ondas, esperando desmoronar mas nunca chegando às vias de fato. A casa de praia de Hulnitol amava reuniões — quanto mais gente, melhor. Se alimentava do materialismo humano. Em algum momento, Hulnitol tinha sido um lugar bonito; até aí, porém, a Terra também.

O tsunami chegou sem aviso, como se conjurado por deuses. Sempre que as pessoas começavam a reconstrução, o tsunami Bunet retornava. Construções humanas eram tão inconvenientes…

Você também já foi uma pessoa.

Surgiu na praia, sem roupa. Não havia água ou ar para tossir, porque seus pulmões não mais existiam. Você não mais existia — não neste mundo. Você achou que ouviria o barulho de vidro, plástico e metal sob seus pés descalços, mas não havia sons exceto o tango das ondas batendo na costa à distância. O vestido de lantejoulas da cor de fumaça que você usava no dia do seu aniversário, baço em vez de cintilante, não estava à vista. Você não sente falta dele, porém.

As ondas lhe engolfavam, noite após noite. Você precisava voltar até o pôr do sol ou perderia para sempre o acesso à terra dos vivos. As ondas sussurravam, acenavam, lhe diziam para deixar todos para trás — os humanos. Você respondeu que não podia, não ainda. Antes de retornar à água todas as noites, você sempre deixava mensagens na palmeira perto da casa de praia. Para quem? Por que queria sustentar, em vez de romper, os laços com o mundo humano que tinha tão pouco a oferecer?

 

1º de outubro de 2095

Você não estava lá quando acordei na areia. Foi uma surpresa ver que a casa de praia continuava intacta. O resto do pessoal também tá… intacto?

 

Você correu a mão pelos sulcos gravados na casca. Não era capaz de tocar nada feito pelo homem, mas de alguma forma a natureza estava sempre lá.

 

2 de outubro de 2095

Não consigo avançar além dos limites da casa de praia. O fim da via que leva até a garagem é o fim do meu mundo. Você vai voltar pra me encontrar? Vai conseguir me ver? Talvez a água consiga chegar mais longe.

 

Perto da palmeira, você empilhou pedaços de madeira trazidos pela água, formando uma espécie de altar. Linhas irregulares se sobrepunham no topo. Ali, você pousou o convite de aniversário laminado que encontrou com seu nome.

Por que iria querer festejar na casa de praia, já que passou a vida dentro das muralhas da cidade — tanto a ponto de o oceano e as águas ao redor serem quase uma coisa mítica? Por que iria querer tamanha extravagância? Com luzes urbanas por todos os lados, você não enxergava nada além da beleza da Terra.

 

3 de outubro de 2095

Você tentou me alertar. Eu sei. Mas se sabia que era perigoso, por que veio mesmo assim? Por que ficou enquanto o céu escurecia cada vez mais? Enquanto os trovões retumbavam e a gente ria? Mas sério, a tempestade é que devia ter achado a situação engraçada? Por que você ficou ali no canto enquanto a gente ofertava nossos copos de plástico vermelho, nossos sapatos, qualquer coisa que a gente encontrasse naquele estupor embriagado, chamando tudo de “sacrifício” enquanto os sacrifícios de verdade éramos nós? A gente até brincou, dizendo que uma tempestade se aproximava porque os deuses estavam bravos. Como a casa, talvez eles pudessem ser acalmados por oferendas materiais. Estávamos errados.

 

Você encontrou o corpo dela — a única conexão que ainda tem com o mundo humano — na costa, antes do pôr do sol. Ela estava com a pele inchada e distendida. No bolso, ainda levava o cartão de aniversário que ela tinha escrito. Você não podia encostar no tecido, feito pelo homem, mas dava para ver que o objeto estava ali pela forma, pelos ângulos retos que marcavam o algodão orgânico — que, por sua vez, contrastava de forma nítida com seu longo vestido artificial neon engolido pelas águas revoltas. Ela nunca lhe entregou o cartão, mas você já tinha uma sensação do que estava escrito. As ondas foram se aproximando até lamberem seus pés — e os dela.

Quando o sol se pôs, você não voltou à água. Ficou olhando o fantasma do tsunami se aproximar, e com a onda veio elaBunet. Vocês tinham o rosto quase igual, mas por que eram tão diferentes? Ela caminhava por aí recolhendo o lixo da cidade enquanto você só contribuía com a sujeira. A casa onde ela vivia era quase estéril, enquanto a sua se localizava na cobertura de um prédio que nunca dormia, com suas lâmpadas luminescentes piscando para as estrelas como se dissessem “Ei, sou mais brilhante, sou melhor”. Não importava mais. Logo você e ela seriam iguais.

Você deixou para trás o cadáver humano de Bunet, uma conexão ao mundo humano partida e abandonada, e adentrou as ondas suspensas de Bunet.

 

4 de outubro de 2095

Vamos voltar, e voltar, e voltar, até que toda a imundície que deixaram neste planeta desapareça.

 

Você e Bunet se tornam uma coisa só. Não importava de que nome chamariam você, porque junto com ela você espalharia o caos num mundo que deu as costas para as águas.

Autoria
Ai Jiang

Ai Jiang é uma escritora sinocanadense vencedora dos prêmios Ignyte, Bram Stoker e Nebula e finalista dos prêmios Hugo, Astounding, Locus, Aurora e BFSA. Nasceu em Changle, Fujian, e atualmente reside em Toronto, Ontário. Sua obra pode ser encontrada em revistas como F&SF, The Dark e The Masters Review, entre outras. Foi agraciada com a bolsa Fresh Voices para cursar o workshop Odyssey em 2022, e é autora de Linghun and I AM AI. O primeiro livro da sua duologia de novelas, A Palace Near the Wind, será lançado em 2025 pela Titan Books. Pode ser encontrada no X (@AiJiang_), no Instagram (@ai.jian.g) e no seu site aijiang.ca.

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