Na tentativa de contrabandear o fantasma da mãe para o novo país, Niovi acabou empurrada de um agente de segurança para o outro, tendo de informar várias vezes o lugar e a data da morte daquela que lhe dera à luz.
— Por acaso a senhora está levando um fantasma? — perguntou a mulher com uniforme de segurança. O crachá informava que seu nome era Stella. A oficial apertou os lábios e apontou para a imagem no escâner, que mostrava o fantasma acomodado dentro de um colar. Depois tirou o acessório de Niovi, deixando com ela apenas o celular. — Sinto muito, mas se ela não morreu aqui, não pode te acompanhar.
O tom de voz neutro da mulher indicava que já havia feito aquilo várias vezes. Na hora, Niovi ficou ressentida — a agente ainda tinha o próprio fantasma a esperando voltar para casa, para oferecer conforto em momentos de tristeza e dar conselhos quando necessário. Mesmo assim, estava tirando o de Niovi.
Stella aguardou. Deu um tempo para que Niovi pensasse, tomasse uma decisão. Uma opção seria dar meia-volta e retornar para casa levando junto o colar. Retornar para o auxílio-desemprego e para um futuro que ela já não conseguia mais imaginar. Outra seria seguir pela longa série de corredores, passando pelas luzes tremeluzentes até sair para a noite, sozinha, deixando o fantasma da mãe para trás — para onde espíritos voltavam em ocasiões como aquela? Niovi seria uma nova pessoa em um novo país, seu passado totalmente expurgado.
Fantasmas imigrantes eram considerados desnecessários. As únicas coisas que tinham a oferecer eram histórias e memórias.
Niovi havia se preparado para aquela possibilidade, mas não perdera as esperanças de não precisar abandonar a mãe.
Ela entregou o colar à mulher impassível e se deixou derivar pelo corredor como se um pé de vento a tivesse soprado para longe.
O fantasma da mãe acenou de trás do detector, e Niovi concentrou os pensamentos no Sábado das Almas. Era uma prece, uma invocação conforme ia colocando uma distância cada vez maior entre ela e a agente de segurança, entre ela e o colar. Sem o fantasma da mãe, Niovi logo começaria a se esquecer. Mas daquilo precisava se lembrar. Precisava se apegar a algo agora que a mãe fora arrancada dela.
O Sábado das Almas.
Quando o fantasma enfim desapareceu, as pernas de Niovi pareciam pesadas como chumbo. Seus braços pareciam pesados como chumbo. Tudo parecia pesado como chumbo, e ela mal conseguia se mexer.
— Bem-vinda! — Niovi ouviu o motorista dizer quando embarcou no ônibus de translado interno do aeroporto.
*
A primeira coisa com a qual Niovi se deparou quando saiu do veículo foi o frio. Ainda era outubro. A neve começaria no fim de novembro. Mas o frio já parecia absoluto, completo, parecia uma muralha, uma linha extra de defesa entre ela e aquelas pessoas cheias de fantasmas enquanto ela mesma não tinha fantasma algum. Um último aviso de que fantasmas imigrantes eram um transtorno, desperdício de espaço.
— Não se preocupa — sussurrou ela para o ar gelado. — Você chegou tarde demais.
Ela começou a nova vida em um pequeno apartamento em uma área pouco iluminada de uma rua sem saída.
De manhã, enquanto esperava os dias passarem para poder começar no emprego novo, ela caminhava pela cidade, contando fantasmas.
Sempre que saía, as pessoas da cidade reparavam nela, olhavam para ela e a observavam com atenção. Não, ela não. Prestavam atenção na sua falta de fantasmas. Ela era uma bizarrice no meio de pessoas cobertas de espíritos que os seguiam a cada passo. Alguns olhavam para ela com preocupação, outros com curiosidade escancarada.
Havia outras pessoas sem fantasmas, é claro. Geralmente se reuniam em grupinhos, se protegendo dos olhares indesejáveis ou, talvez, do próprio luto. Niovi não conseguia nem olhar para elas. Em vez disso, gravitava ao redor dos demais. Os que ainda tinham fantasmas. Apesar dos seus olhares de curiosidade e, algumas vezes, de pena. A maioria sequer notava a presença dos fantasmas; a afeição dos espíritos era algo natural, corriqueiro. Para Niovi, tal indiferença era fascinante.
E havia também os fantasmas soltos. Os conjurados pela memória coletiva das pessoas. Não pertenciam a alguém em particular; pertenciam a todos. Niovi gostava de pensar que pertenciam a ela também, especialmente ali.
Um dos fantasmas era o do velho general. Ele ficava parado ao lado da própria estátua, junto com o fantasma de seu cavalo, e servia de espetáculo às criancinhas. Niovi ficou sabendo que era um sujeito cabeça-dura; trotava pela mesma praça havia duzentos anos. Ele tinha morrido numa batalha da qual poucos se lembravam. Ficava ali com suas condecorações, falando de um jeito antiquado que ninguém mais entendia e cavalgando em sua montaria fantasmagórica, batendo continência para os turistas.
Niovi gostava do General. Ele era velho, muito velho, e pertencia a um tempo em que fantasmas podiam se mover por aí seguindo seus entes queridos sem fronteira alguma para os separar. Niovi pensou no colar no qual tentara trazer a mãe. Tinham enviado o acessório para ela alguns dias depois, frio e vazio. Ela ficou com ele mesmo assim. Era da sua mãe, afinal de contas.
Ela se sentou num banco, com um saco de batatinhas chips no colo, e deixou a mente voar de novo até seu lar. Até sua casa vazia. A casa de sua mãe. Será que o fantasma dela havia ficado ali ou se mudara? Talvez tivesse seguido outra pessoa da família, como fazia quando era viva e Niovi ignorava suas ligações. Talvez tivesse se tornado fantasma dessa pessoa.
As bordas do rosto da mãe de Niovi já estavam começando a ficar borradas em sua mente. Se tornaram desfocadas. Ela olhava para as fotos da mãe no celular, mas eram sem graça e desprovidas de vida. Não evocavam tanto a imagem da mãe.
Então ela ficou ali sentada na praça, vendo as crianças berrando numa língua que ela ainda estava aprendendo e as ouvindo rir, rir sem parar.
*
O primeiro emprego de Niovi foi num restaurante grego perto do Porto Sul. Ela queria cozinhar. Na verdade, precisava. E não só para justificar ter ficado naquele país — cozinhar também era a coisa que a mãe fazia de melhor quando viva; além disso, quando ainda estavam juntas em Atenas, filha e fantasma, cozinhar ajudava Niovi a não se esquecer das coisas às quais precisava desesperadamente se ater.
O homem emburrado sem fantasma do restaurante analisou o currículo de Niovi e lhe fez várias perguntas, cético de que ela pudesse fazer o que alegava. Disse que várias pessoas juravam saber fazer coisas que não sabiam só para conseguir um emprego ali, mas Niovi teve a impressão de que não era verdade. Talvez soubessem fazer o que diziam, mas se não tivessem fantasmas assim como ela, e como seu emburrado potencial chefe, em determinado ponto elas haviam começado a esquecer os detalhes. Niovi tentou abafar a vozinha em sua mente que dizia que ela podia ser a próxima.
— Beleza — disse o homem, enfim. — Você começa lavando os pratos, e depois vai pra auxiliar de cozinha.
Ela sentiu o coração apertar ao ouvir a proposta, mas era uma porta — talvez uma janela entreaberta — para o trabalho que queria. Assim, concordou em assumir o turno da manhã.
*
Niovi invocou a imagem da mãe viva mexendo uma panela de quiabo refogado, o fantasma da tia da mãe lhe sussurrando algo enquanto cozinhava. Invocou o cheiro dos temperos e do tomate e o suor brotando na testa da mãe como se aquilo pudesse trazer seu fantasma de volta. Ou ao menos ajudá-la a manter aqueles preciosos detalhes.
Ela se viu naquela cena também. À mesa, sua versão mais nova encarava o prato com uma careta de nojo no rosto. O pai dela assentia de forma conspiratória do outro lado da mesa, para o desgosto do próprio fantasma. Inventava uma tarefa para dar à filha uma desculpa para sair da mesa. A avó dela — o fantasma do pai de Niovi — balançava a cabeça, mas sem falar nada. A garotinha se esgueirava para fora da cadeira e saía correndo, porque na época odiava quiabo. Que boba.
No fim, ela não sabia dizer se aquilo ajudava em algo. Mas o que encontrou quando seu intervalo terminou e voltou a seu posto foi uma lufada de aromas, similares aos da lembrança, vinda da cozinha do restaurante envelopada em ar quente. Não era quiabo que estavam cozinhando. Mas os temperos, o murmurar baixinho das panelas — tudo era dolorosamente íntimo.
Niovi não conseguiu resistir ao ímpeto de largar a torneira da pia aberta e seguir o cheiro até a cozinha. Esperava sentir aromas similares ali, mas não tão familiares assim.
Havia um homem curvado sobre panelas de todos os tamanhos. Seus movimentos eram calculados, uma coreografia silenciosa de montagem dos pratos. Cachos de cabelo louro-acinzentado escapavam de sua bandana. Niovi sabia que a equipe era formada majoritariamente de pessoas que não tinham vindo da Grécia, mas ainda assim o fantasma do sujeito a surpreendeu. Não o fato de ele ter um fantasma — quase todos os empregados que ela conhecera ali tinham; afinal, aquele era o país deles. Mas aquele fantasma era tudo que o homem não era, e completamente familiar a ela.
Era o fantasma de uma idosa, mais velha do que a mãe de Niovi quando falecera. O cabelo encaracolado e rebelde era escuro, marcado aqui e ali por madeixas grisalhas, e o rosto em nada lembrava o do cozinheiro. Ela pairava acima dele, e quando as mãos do homem vacilavam ou sua respiração se acelerava, ela tocava seu ombro e acalmava o sujeito de novo até que os movimentos ficassem mais precisos e deliberados. Quando terminava a montagem de um prato, o fantasma sorria e assentia. Ele estava de costas para o fantasma, mas Niovi sabia que ele sentia a aprovação.
— Niovi! — A voz do chefe veio dos fundos.
E, no mesmo instante, o cozinheiro ergueu o olhar, assim como o fantasma que a lembrava tanto da mãe, e o Sábado das Almas voltou a sua mente como uma ferida que acabara de ser reaberta.
Antes que o homem — que ostentava um sorriso que ocupava metade de seu rosto — tivesse a chance de proferir uma palavra sequer, ela percebeu que estava parada ali havia tempo demais. Então só assentiu de leve e foi embora para terminar seu turno, virando o rosto para o outro lado um tanto rápido demais, desesperada para esconder as lágrimas.
*
Niovi perguntou sobre ele no dia seguinte. Conversou com Matilda — que sempre falava bem devagar para que ela pudesse entender, mas que desviava a atenção assim que Niovi tinha dificuldade de terminar uma frase. Ou talvez Matilda só não tivesse onde repousar o olhar já que Niovi não tinha um fantasma. Talvez tal ausência a deixasse desconfortável.
O nome do cozinheiro era Remi e ele tinha nascido ali, embora os avós maternos tivessem emigrado da Grécia cerca de cinquenta anos antes. Foi ali que eles morreram também, antes mesmo de ter a chance de se aposentar. É por isso que ele mantinha o fantasma da avó, que parecia pertencer àquele lugar tanto quanto Niovi — ou seja, não muito.
Ela sentiu uma pontada de inveja. Remi tinha o melhor dos dois mundos. Falava como um local e tinha um fantasma que carregava o tipo de conhecimento que Niovi precisara lutar para manter consigo. Morreu de vergonha no instante em que o pensamento lhe passou pela cabeça.
— Então… — começou Matilda. O fantasma de um rapaz pairava sempre a seu lado. Pelas similaridades, Niovi imaginava que fosse um parente próximo. Um irmão, talvez. Matilda parecia à vontade com ele, e não lhe dava muita atenção. Niovi olhava Matilda nos olhos para evitar mirar o fantasma. — Você podia sair com a gente uma noite dessas. Só o pessoal do trabalho. Falar mais com a gente ia te ajudar a praticar.
— E o Remi? — Niovi ousou perguntar.
Matilda deu um sorrisinho, o que fez a outra corar. Mas antes que Niovi tivesse a chance de dizer qualquer coisa, Matilda encolheu os ombros de leve.
— Ele prefere andar com os sem fantasma. Isso não vai te ajudar a se integrar.
Tudo que Niovi conseguiu ouvir atrás daquela preocupação foi: Nossos fantasmas são o suficiente. Nós somos o suficiente. Mas os fantasmas deles eram diferentes demais do dela, e era mais difícil conviver com pessoas vivas. Ela tinha passado tanto tempo com o fantasma da mãe, com seus suspiros silenciosos e seu olhar calmo engolfando cada movimento seu, que, quando era chamada para sair com os colegas de trabalho depois de um turno, sempre rejeitava o convite.
— Tô muito cansada — dizia, porque não queria dizer que estava muito triste.
*
Naquela cidade, como em qualquer outra, Niovi via fantasmas por todos os lados. Eles espiavam por trás das cortinas, acenavam para ela de balanços antigos ou se ficavam em corredores de lojas encarando pensativamente prateleiras que não estavam mais ali. Mas, na maioria do tempo — quando eram do tipo associado a alguém — estavam sempre seguindo sua pessoa correspondente.
Fantasmas eram feitos de histórias. A única coisa que mudava era como escolhiam contá-las. Para Niovi, os fantasmas naquele país pareciam mais com sombras. Eram calmos, mais desprovidos de opiniões. Suas histórias eram feitas de olhares fixos e breves acenos com a cabeça, às vezes um tapinha nas costas aqui e outro ali.
Na Grécia, eram mais barulhentos; as pessoas davam valor a suas opiniões, seus sussurros eram procurados e suas histórias carregavam memórias das quais, caso contrário, o povo de Niovi não se lembraria. Não com a mesma nitidez de cheiros, gostos e texturas. Às vezes, quando estava ouvindo uma das histórias da mãe, Niovi se pegava revivendo eventos que jamais haviam acontecido com ela. Algo que tinha ocorrido com a mãe ou a avó décadas antes carregava as sensações e o peso do presente. Eram coisas que a deixavam feliz, triste ou irritada numa intensidade que, ali, seria considerada desproporcional.
Apesar de seus esforços para conjurar as lembranças, Niovi não conseguia fazer aquilo como antes. Estava começando a esquecer. Começara com os feriados, depois as palavras certas demoravam mais para chegar aos lábios, e enfim a forma como sua família temperava os pratos estava indo embora.
Quando as mãos ágeis da mãe recheavam a torta com queijo aos sábados, antes do sol nascer, era menta ou manjericão que ela usava? Quando cozinhava carne tenra em caçarolas com tomates frescos, era canela ou pimenta-da-jamaica que tornava tudo tão docinho e cheiroso?
Mesmo na forma de fantasma, a mãe dela nunca falhara em fazê-la relembrar aquele tipo de coisa, ou quem e por que era, especialmente quando Niovi estava triste ou solitária. A mulher era boa em perceber aquele tipo de coisa. Sem ela ou seu fantasma por perto, Niovi estava começando a perder partes de si que não sabia como recuperar.
Nenhum dos fantasmas que conheceu ali falava sua língua, ou sequer falava. Ela sabia que devia ter gente como ela que falecera naquele país. Por mais que a ideia fizesse seu estômago se revirar, tinha noção de que era seu provável destino. Mas, até aquele momento, Niovi achava que eles haviam escolhido voltar para casa em vez de ficar ali. Seguir suas raízes de volta até o local de onde tinham vindo para assombrar um parente ou simplesmente seguir em frente.
Mas então ela viu a avó de Remi, e dali em diante nada foi como antes.
*
Foi um dia estranho no serviço.
O sempre mal-humorado chefe de Niovi informou que, na semana seguinte, ela mudaria de praça e passaria a ajudar na cozinha. A mulher sentiu o estômago se revirar de medo e nervoso.
— Você conseguiu. — Remi deu um tapinha em suas costas, sorrindo. O fantasma do cozinheiro tocou bem de leve as margens da percepção de Niovi, fazendo-a se encolher.
Ela agradeceu num sussurro e engoliu em seco. O mundo parecia estar se fechando ao seu redor.
Niovi ficaria bem ao lado de Remi, na cozinha. Vendo o homem — assim como o fantasma da avó dele — enquanto trabalhasse ali. Pedir para mudar de turno pareceria precipitado, e se demitir era impensável. Ela não tinha mais para onde ir.
*
Niovi revisitava sem parar um passado cujas peças mal conseguia juntar para formar algo coerente. O Sábado das Almas estava quase chegando, e ela passara as últimas noites falando com parentes ao telefone, tentando desesperadamente recriar suas memórias através de outras pessoas. Novamente sentindo saudades daquela conexão que tinha com a mãe.
Quais ingredientes ela usava nas oferendas de koliva? Quais palavras dizia em suas orações? Niovi tentava evocar as particularidades que tornavam único o ritual de sua mãe. Não coisas que poderia perguntar para outras pessoas, ou sobre as quais poderia ler, mas as que já tinha experimentado e ouvido na voz característica da mãe. A cultura de uma só pessoa em meio à cultura coletiva de seu povo.
Era impossível. Mesmo assim, seus familiares se ofereceram para ajudar.
— O koliva tem nove ingredientes. Isso é coisa que se esqueça?
— Quando você vem visitar a gente?
— Acende uma vela pra alma dela.
— Tem uma igreja aí onde você possa deixar as oferendas? Pra onde você vai?
Para onde ela iria?
Para onde pessoas sem fantasmas iam? As que ela via na rua sempre pareciam perdidas e desnorteadas pelo jeito que se apinhavam juntas. Mas talvez isso fosse só como ela se sentia, uma projeção de sua própria falta de rumo.
*
Ela enfim cedeu.
Não tanto pela pressão dos colegas, mas sim pela presença de Remi e seu fantasma. Doía estar na cozinha enquanto Remi trabalhava. Quando precisavam conversar durante o turno (o que não era tão frequente), ela sentia o olhar fixo da idosa a seguindo.
Assim, certo dia depois do trabalho, ela se deixou ser carregada pelas pessoas com fantasmas que não a faziam sofrer, cujo olhares ela não conseguia decifrar com tanta facilidade. Os fantasmas que podiam lhe ensinar algumas coisas sobre aquele lugar para substituir as que ela havia esquecido.
Então ela permitiu que o grupo de cinco pessoas falasse por cima dela, através dela, como se ela fosse um de seus fantasmas. De vez em quando, formulava uma frase meio capenga ou fazia uma pergunta que parecia boba demais para eles, mas que era completamente vital ao entendimento dela da discussão. De toda forma, os colegas falavam rápido demais para que ela pudesse acompanhar.
Depois de um tempo, Niovi desistiu — ou talvez tenham sido eles.
Ela se levantou para ir embora, mais perdida do que nunca. E como se Niovi fosse a âncora, a razão para que o encontro estivesse acontecendo (não era), os outros interromperam o papo no meio e pagaram a conta às pressas.
Todos seguiram, meio-embriagados e lânguidos, pela rua de paralelepípedos. Os pubs, distribuídos dos dois lados da rua, atraíam as pessoas para dentro, para longe do vento cortante, mas os músicos de rua tinham outros planos. O restaurante onde Niovi trabalhava ficava logo na esquina, numa das ruas mais movimentadas.
Foi Matilda que contou a ela sobre o fantasma de uma cantora independente que perambulava a alguns quarteirões dali. Ela era solta, como o General, e só aparecia nas noites de domingo no mesmo lugar onde se apresentava quando ainda estava viva, dedilhando seu violão fantasmagórico.
— O que ela costuma cantar?
— Ah, as músicas tristes de sempre. Algumas são estrangeiras. — Matilda apoiou o braço no ombro de Niovi para ajeitar a tira do sapato de salto alto. Niovi ignorou o cotovelo da mulher cutucando seu pescoço. Não queria reclamar à toa. — Os casais adoram ela.
Niovi assentiu. Pensou em que música a mãe cantaria se estivesse ali. Nenhuma, provavelmente. Faria as panelas tilintarem e balançarem pela mesa num frenesi harmônico. Aquela era a música de sua mãe.
Estavam chegando perto do local onde o fantasma da artista se apresentava. Pétalas murchas acarpetavam o pavimento de concreto.
Quando Niovi ouviu a música, soube de imediato que a canção era grega. O fantasma era uma mulher de cinquenta e tantos anos, com jeitão de hippie e olhar gentil. Dedilhava o violão enquanto soprava a melodia na gaita presa a um suporte de pescoço. Ela não parecia grega de longe, mas Niovi já se enganara outras vezes.
Como se saído direto de seus pensamentos mais secretos, os que ela tentava manter em silêncio em noites como aquela, Remi estava parado ali, a alguns metros do fantasma da musicista, mas completamente envolvido pelo espírito da própria avó.
Parecia coisa demais e nada ao mesmo tempo. Como um daqueles momentos em que decisões precisam ser tomadas. Niovi olhou para trás. O grupo de cinco tinha parado diante de outro músico de rua — um vivo — ou talvez na frente de um pub (não tinha como saber com certeza), e debatia sobre algo que Niovi estava cansada demais para tentar decifrar.
Então ela parou ao lado de Remi, que murmurava distraidamente a letra da música. O fantasma da avó — com o cabelo encaracolado ajeitado num penteado antigo — irradiava calma. Niovi sentiu o próprio corpo permeando os limites de sua silhueta, o calor da familiaridade mais cortante contra sua pele do que o ar gelado dos dias mais frios daquele lugar.
Ela não se mexeu, só ficou ali parada ouvindo a música, sentindo uma doce sensação de deslocamento.
— Como ela sabe a letra?
Niovi agora estava convencida de que o fantasma da musicista era dali. As palavras saíam sem a profundidade e a nuance que deveriam ter, mas eram cantadas com uma emoção que Niovi admirava.
Remi se virou imediatamente, como se tivesse tomado um choque. Os lábios da avó dele se curvaram num sorriso.
— Aprendeu com o marido — respondeu, ainda chocado pela ousadia da colega, ou talvez por sua mudança de comportamento. — Ele veio pra cá no fim dos anos oitenta. Ela foi a primeira pessoa com quem conversou neste país, quando seguia por esta rua solitário e de olhos arregalados.
Assim como você — Niovi só o imaginou dizendo aquelas palavras, mas sabia que elas haviam lhe passado pela cabeça.
O corpo de Niovi tremia quando ela avançou mais alguns passos na direção dele. Na direção de seu fantasma, que a assombrava em todos os sentidos da palavra.
— Sabe… — disse ele depois que se recompôs um pouco. — A gente não tá sozinho aqui. Tem partes de nós em todos os lugares. Temos um passado aqui também.
Você tem um passado aqui, quis dizer ela. Ele já devia saber que ele era diferente. Em vez disso, porém, uma fagulha de esperança se acendeu em Niovi. Uma promessa lembrada.
— Quer dizer então que você celebra o Sábado das Almas?
Ele deu um sorrisinho. Em seus olhos brilhava a disposição de se abrir, e ela estava pronta para ouvir.
*
Ele mostrou a ela um lencinho bordado. Era como Remi carregava a avó.
Algo se quebrou dentro de Niovi.
Ele não tinha família. Não tinha pais e — ao contrário dela — não tinha irmãos. O fantasma era da avó que o criara desde os dez anos. Ao morrer, tinha ficado com ele.
— Eu voltei do funeral — disse Remi — e lá estava ela, parada sobre o lenço, esperando por mim. — Ele bebericou o café, a voz tão trêmula quanto a mão.
Os olhos do fantasma estavam cheios de compaixão enquanto fazia cafuné no neto.
— Ela é a única conexão que tenho com o passado — continuou Remi. — Com meu passado.
Ele sorriu, mas o sorriso tinha um toque de amargor. Niovi entendeu coisas além das que ele havia admitido. Piscou para reprimir as lágrimas — por ele, por ela, por ter invejado o colega todo aquele tempo, por não ter ido conversar com ele antes.
A saudade que tinha da mãe antes parecia um cordão — que de alguma forma havia crescido em questão de dias, horas, até virar uma corda grossa. Desde que Remi dissera para ela que a ajudaria a ver seu fantasma de novo. Havia um motivo para pessoas sem fantasma andarem juntas: elas compartilhavam memórias e histórias e juntavam seus recursos. Havia até fantasmas soltos formados pelas memórias de famílias suficientemente grandes. Existia um jeito de levar o fantasma da mãe dela para aquele país. Mesmo que fosse só por um tempinho.
— É impossível fazer isso sozinha — disse ele. — Mas dá pra fazer. — Havia uma promessa em suas palavras, e, pela primeira vez desde que chegara ali, ela teve fé.
*
No sábado, ela se encontrou com Remi. Ele a levou para uma região da cidade que Niovi ainda não conhecia — mas enfim, ela não tinha ido a tantos lugares assim. Caminharam lado a lado, com os ombros esbarrando de vez em quando. Tímido, o fantasma da avó dele os seguia.
Naquelas ruas, quase ninguém a encarava — ou o vazio acima e ao redor dela — com pena ou surpresa. Nem os locais, perambulando pelas ruas com seus fantasmas, ligavam para Niovi. As pessoas sem fantasma a olhavam nos olhos, inabaladas. Muitas andavam em grupos, de fato, mas agora a percepção dela tinha mudado. Agora via a diversão, assim como as histórias compartilhadas, as piadas, a companhia. O dar, assim como o receber.
Os sem fantasma seguravam velas e pratos de koliva e oferendas para os mortos. Havia empolgação no ar. Era uma celebração.
— É assim que fantasmas são invocados aqui — explicou Remi. — Não precisa ser uma coisa triste.
Não, não precisava.
Ela se sentia intimidada e inquieta com aquela liberdade recém-descoberta. Com a consciência de saber que a pessoa da qual ela tinha vindo — porque pessoas vinham de pessoas mais do que de lugares — podia ser revisitada, assim como um local. Na Grécia, ela nunca precisara pensar sobre linhagem antes. Dava como certa a presença de seu fantasma, e agora entendia que algo assim era um privilégio.
Se a saudade que tinha da mãe era uma corda, tal corda tinha agora se ramificado na direção de Remi, do fantasma de sua avó, das pessoas sem fantasmas ao seu redor. Niovi deixou a corda a guiar. Seguiu a multidão que entrava na construção de tijolos vermelhos na esquina, espremida entre prédios de escritórios no centro da cidade.
Sussurros e risadas pairavam no ar quando ela entrou. Niovi analisou os arredores procurando fantasmas conhecidos, quase sem respirar. Sua expectativa murchou como um balão quando descobriu que nada tinha mudado. Enquanto Remi a guiava para um canto afastado da parede, deu uma bronca em si mesma por ter se permitido ter esperanças demais.
Havia uma mesa longa ali, coberta com alvas toalhas de mesa bordadas. Travessas em todas as formas, tamanhos e cores haviam sido deixadas sobre o linho, mas continham apenas uma coisa: koliva, a comida para os mortos.
Ela depositou o próprio prato na mesa. Niovi em pessoa tinha preparado a oferenda, tomando todo o cuidado de não esquecer ingrediente algum — com medo de que, se esquecesse, tudo aquilo, toda a força que juntara dentro de si durante os dias anteriores ao sábado, seria em vão.
Acendeu uma vela, que acomodou dentro do koliva de modo que parasse em pé, e deixou o colar sobre a mesa. Remi ficou ao lado, seus ombros se tocando. Ela respirou fundo e sorveu o aroma de cada um dos ingredientes. Nove, como os coros de anjos.
Trigo, para a terra e as almas daqueles sepultados nela.
Farelo de pão, para o solo — que ele fosse leve sobre o túmulo dos que tinham partido.
Branco, na forma de amêndoas confeitadas, para os ossos alabastrinos dos mortos.
Sementes de romã, para Perséfone e Hades, mas também para a promessa do Paraíso.
Canela, para todos os cheiros e gostos daquele mundo.
Salsa, para a verdíssima relva do local de descanso.
Uvas passas, para as videiras de Dionísio e a doçura que era aquela vida.
Açúcar, para a doçura do Pós-Vida.
Nozes e sementes, para a fertilidade e a vida que ria na cara da morte.
Houve uma mudança de atmosfera, uma mistura de aromas. Niovi ouviu Remi arquejar e abriu os olhos. Por alguns instantes, encarou o colar sobre a mesa. Não ousou erguer o rosto.
Quando o fez, o fantasma da mãe parecia diferente do que se lembrava. Era feito de memórias que se acenderam todas ao mesmo tempo, como um farol dentro da entidade, sua voz soando como uma mistura de temperos e sabores familiares. Tudo recaiu sobre Niovi, envolvendo seu corpo como um véu.
Ela teve um lampejo dos olhos da mãe. Depois, foi como se o fantasma se dispersasse ao seu redor, se infiltrando naquele país novo que Niovi enfim poderia chamar de seu.