HISTÓRIA

Tradução de Jana Bianchi

Preparação de Diogo Ramos

Publicado originalmente em inglês na revista Strange Horizons (leia AQUI)

Publicado originalmente em português na revista Trasgo (leia AQUI)

Quando aquele verão chegou ao fim, os brasileiros eram pura alegria. Carros voadores enfim haviam chegado — e, como ninguém tinha dinheiro pra comprar, todos os alugavam alegremente, escolhendo cores e marcas preferidas. Os carros voadores se dirigiam sozinhos; pedestres, agora, tinham as ruas apenas para si. O futuro havia chegado.

No fim do verão seguinte, o povo quase explodia de felicidade porque alugar carros voadores dava cupons e descontos. Supermercados e lojas de departamento haviam sido integrados ao sistema de aluguel de carros voadores. As pessoas sentiam que estavam ganhando dinheiro no caminho pro trabalho e pros compromissos. O que mais poderiam querer?

Um terceiro verão acabou. Algumas pessoas começaram a se frustrar. Claro, sempre tem aqueles que não ficam felizes com o status quo. Reclamavam que os carros voadores estavam criando um abismo social ainda maior entre as pessoas pobres e as que podiam alugar um veículo. Mas quem não podia, se os planantes não viam mais ninguém andando por aí? Pedestres reclamavam do mato crescendo nas ruas lá embaixo; por que não alugavam carros também, aqueles ripongas?

O quarto verão foi marcado pelo vandalismo. Carros voadores por todo o país tiveram palavras de ordem arranhadas na lataria. Alguns chegaram a ser incendiados — e isso a elite não era capaz de suportar. “Propriedade privada (e Brasil) acima de tudo”, gritavam à noite, das janelas de seus arranha-céus. A polícia era incapaz de conter todos os vândalos, então as empresas a substituíram pelos drones. Espalharam-se rumores de que, a seguir, as empresas planejavam dar um jeito no sistema de saúde — o que trouxe um alívio imenso à elite, que não conseguia mais suportar a ideia daqueles hospitais sem sal nem açúcar, com cara-de-hospital. Pra eles, qualquer coisa sem propagandas era um pé no saco.

O quinto verão chegou e, com ele, revelações também: as empresas tinham comprado não só os hospitais, mas também todas as escolas do país. Bibliotecas foram remodeladas e reconstruídas com livros adequados, focados em negócios, e o currículo escolar oferecido agora incluía uma variedade maior de opções aos alunos — que podiam virar empregados ou chefes, de acordo com o valor que os pais pudessem investir no sistema de aluguel de carros voadores. As escolas novas alcançaram até mesmo as populações indígenas na Amazônia — talvez o agronegócio enfim pudesse transformar aquela floresta inútil em terra produtiva.

Todos ganhavam cupons para tudo, e aqueles que não ganhavam nada logo começaram a morrer de fome ou de frio nas ruas, que haviam se transformado em florestas novas em folha formadas por moitas e mato alto. Vândalos e terroristas foram presos e forçados a dedurar os cúmplices.

No décimo verão, aniversário da então chamada Revolução do Carro Voador, os terroristas partiram para o tudo ou nada. Hackers atacaram as redes que controlavam os cupons e os sistemas de aluguel de carro. Enquanto os drones tentavam rastreá-los e os programadores das empresas tentavam dar um jeito nas redes, os atacantes ousaram desferir o golpe de misericórdia: servidores em todo o território nacional foram incinerados. Vários insurgentes não conseguiram sair dos data centers, ficando pra trás de forma a garantir que o fogo causaria tanto dano quanto possível. Drones mataram vários dos baderneiros; aqueles pegos pela polícia tomaram veneno antes de serem forçados a abrir o bico. A polícia mascarou as estatísticas, constrangidos com a escala do ataque: mais de vinte mil pessoas haviam se rebelado naquela noite. Mais de quinze mil não voltaram para casa. Desde então, não há mais Jornal Nacional, redes de comunicação ou internet. Adeus carros voadores e descontos. Tudo virou caos.

Quando a elite demandou respostas de seus diretores e CEOs, ouviram que deveriam deixar de ser disruptivos — as pessoas mais afetadas pelos ataques haviam sido as mais ricas de todas. Pobres, pobres pessoas mais ricas de todas.

Agora que as pessoas e a elite voltaram a ter que andar pelas florestas urbanas, todos juntos, talvez entendam. Talvez lutem pra assumir o governo, pra dar poder às pessoas e não às empresas. Não dá pra dizer que isso já tenha funcionado perfeitamente antes, mas agora a gente tem uma chance de fazer as coisas do jeito certo. Mesmo que seja uma chance ínfima, quero acreditar que eles vão se juntar a nós na revolução de verdade — com os dois pés bem plantados no chão.

Autoria
Kali de los Santos

Kali de los Santos é mestre em Escrita Criativa (PUCRS), tendo estudado a decolonização de processos criativos. Já trabalhou com tradução e revisão de RPGs e atualmente faz criação de lore e design de conteúdo e narrativa para os jogos Cosplay Club (2024) e Deep Dish Dungeon (TBA) na Behold Studios. Compõe a organização do Sarau Singularia, com encontros bimensais sobre temas queer dentro da literatura insólita. Tem contos publicados no Brasil e no exterior e seu romance de estreia, Dado selvagem, é uma história canônica no universo de RPG Tormenta e sairá pela Jambô Editora em 2024.
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